Em Deus Confiámos - O Vendedor
"Corre bicho, foge-te a presa que amanhã te caçará."
. (De alguém que não sabia tudo)
Vi-o chegar através da cortina empoeirada da janela, um velho Ford quase desconjuntado coberto da poeira amarelada que ali tudo invadia.
Momentos depois alguém batia à porta. Descobrira depressa que a campainha estava avariada.
Quando a abri deparou-se-me um homenzinho baixo, meio calvo, de olhar matreiro e chapéu na mão. O fato escuro estava tão empoeirado como o automóvel e tivera uma vida de muito uso.
- Bom dia, senhor. Permita-me que me apresente: Douglas Lapuane. – apertei a mão gorda que me estendeu.
- Bom dia. Chamo-me Roger Dipwater e já tenho bíblias suficientes em casa.
Voltei-lhe as costas e comecei a fechar a porta.
- Um momento! Um momento, mister! Eu não vendo bíblias e estou certo de que os meus artigos lhe vão agradar. Com licença.
Antes que pudesse esboçar qualquer gesto para o afastar, o sujeito estava na minha sala, abrindo afanosamente uma volumosa mala castanha que eu, por qualquer razão, não avistara anteriormente.
- Ouça, você está...
- Um momento, Mr. Dipwater. Veja primeiro esta maravilha.
Voltou-se para mim com um pequeno objecto nas mãos.
- Uma autêntica maravilha, Mr. Dipwater! Um exclusivo nacional.
- O que é isso?
- Mr. Dipwater...! Ainda não descobriu?! Isto é um autêntico relógio, uma mirabolante maravilha que estou certo vai querer possuir.
Olhei para a caixa prateada e só vi números. Um relógio? O homem era doido!
- Mr...?
- ... Douglas, para os amigos e clientes.
- ... Mr. Lapuane. Se isto é um relógio, que é dos ponteiros? – esbocei um sorriso trocista. Ele arregalou os olhos e mostrou os dentes num sorriso de triunfo. Tinha chegado onde queria.
- Mas aí é que está a novidade, Mr. Dipwater! Esta coisinha que aqui vê não-tem-pon-tei-ros. As horas são representadas por números e nem sequer necessita de lhe dar corda. É um modelo único e exclusivo, por apenas dez dólares! Sem esquecer o brinde: três magníficos volumes encadernados que serão seus absolutamente de graça.
Ele explicou-me com detalhe como a geringonça funcionava. Não costumo ir na conversa dos vendedores que me batem à porta, vendam eles bíblias ou tapetes, mas Mr. Lapuane acabou por me convencer.
Saiu da minha casa com dez dólares no bolso e um sorriso profissional na face. Voltou-se para mim quando chegou ao alpendre.
- Fez um bom negócio, Mr. Dipwater. Até à vista.
Apertou-me a mão e colocou o chapéu na cabeça, um chapéu que parecia pequeno para ele. Continuei a olhá-lo enquanto avançava para o automóvel gasto, a mala castanha oscilando na mão. Ainda me acenou uma vez, envolvido na mesma poeira amarela em que chegara. Segui-o com o olhar até se tornar um ponto negro na distância, meio oculto pelo pó e distorcido pelos torvelinhos de ar quente. O céu estava limpo e o calor ainda apertava, embora o crepúsculo já não tardasse.
Ainda não falei de mim. O meu nome já o conhecem: Roger Dipwater. Nasci no Midwest, numa pequena cidade perdida na vastidão da paisagem. Fui novo para New York e trabalhei por muitos sítios, em muitos empregos. Consegui frequentar as aulas nocturnas e acabei por conseguir empregar-me numa firma de corretores, na qual fui subindo a pulso e cheguei a sócio. A vida correra-me bem até ao ano anterior, até ao crack da bolsa. Depois desmoronara-se tudo. Restara-me aquela casa, com a sua pequena quinta, e algum dinheiro, pouco. Por ironia, situava-se na região do Midwest...
Tivera poucos amigos antes e agora não tinha nenhum. Vivia uma solidão entrecortada pelas viagens à cidade próxima, para vender os produtos da quinta e fazer as compras, e agora dera-me ao luxo de comprar um relógio por dez dólares. Por muito estranho que fosse não valia esse dinheiro. Começava a sentir-me enganado.
Depois do jantar sentei-me no alpendre. Levei os livros que o vendedor me dera e o relógio. Olhei para ele. Ele dissera-me que... Sim, era verdade! Carregando naquele botão, acendia-se uma luz no seu interior que permitia ver os números que continuavam a pulsar dentro dele. Era na verdade um relógio estranho. Acabei por colocá-lo no pulso, mas conservei o meu no bolso. Não sabia se o novo era de confiança.
Abri um dos livros. Lia-se na primeira página: "Landscapes and Dignity" por Ashmed Koranshi. Nome estranho aquele, porventura indiano. Por baixo indicava-se: "Impresso em Madrasta, F.L.A. em 2145". Dois mil cento e quarenta e cinco?
Cada dia de Verão tem a sua própria personalidade. Aquele era um dia ardente, em que o ar parecia gritar com o calor que lhe ia nas entranhas.
O pó cobria os arbustos à beira da estrada, dando-lhe a aparência de pequenos homens cinzentos correndo no sentido contrário àquele em que o meu carro seguia. As árvores estendiam por vezes os ramos na minha direcção, pedindo água.
Ia voltar a New York.
Ia voltar ao sítio de onde saíra há quase um ano totalmente arrasado, financeira e moralmente. E agora tornava lá, impelido por uma força que não conseguia explicar. Fora aquela sucessão de estranhos factos que me levara a decidir-me: o relógio, a data de impressão do livro... do livro não! Dos livros! Possuíam todos datas impossíveis: os outros eram "Marching South", por Lars Conrad, datado de 2133, e "Monkey Business and other stories", datado de 2147 e escrito por Thomas Nachtflug. E todos tinham a mesma etiqueta de um pálido cor-de-rosa com letras negras a gritar: New World Corp., 53 46th Street, N.Y.. Eu ia para lá. Algo em mim exigira explicações para tudo aquilo, e eu não fora capaz de resistir ao chamamento.
Tudo naquele dia parecia arder com um fogo interior vindo do inferno e o ar queimava-me o rosto e as ideias queimavam-me o cérebro.
. (De alguém que não sabia tudo)
Vi-o chegar através da cortina empoeirada da janela, um velho Ford quase desconjuntado coberto da poeira amarelada que ali tudo invadia.
Momentos depois alguém batia à porta. Descobrira depressa que a campainha estava avariada.
Quando a abri deparou-se-me um homenzinho baixo, meio calvo, de olhar matreiro e chapéu na mão. O fato escuro estava tão empoeirado como o automóvel e tivera uma vida de muito uso.
- Bom dia, senhor. Permita-me que me apresente: Douglas Lapuane. – apertei a mão gorda que me estendeu.
- Bom dia. Chamo-me Roger Dipwater e já tenho bíblias suficientes em casa.
Voltei-lhe as costas e comecei a fechar a porta.
- Um momento! Um momento, mister! Eu não vendo bíblias e estou certo de que os meus artigos lhe vão agradar. Com licença.
Antes que pudesse esboçar qualquer gesto para o afastar, o sujeito estava na minha sala, abrindo afanosamente uma volumosa mala castanha que eu, por qualquer razão, não avistara anteriormente.
- Ouça, você está...
- Um momento, Mr. Dipwater. Veja primeiro esta maravilha.
Voltou-se para mim com um pequeno objecto nas mãos.
- Uma autêntica maravilha, Mr. Dipwater! Um exclusivo nacional.
- O que é isso?
- Mr. Dipwater...! Ainda não descobriu?! Isto é um autêntico relógio, uma mirabolante maravilha que estou certo vai querer possuir.
Olhei para a caixa prateada e só vi números. Um relógio? O homem era doido!
- Mr...?
- ... Douglas, para os amigos e clientes.
- ... Mr. Lapuane. Se isto é um relógio, que é dos ponteiros? – esbocei um sorriso trocista. Ele arregalou os olhos e mostrou os dentes num sorriso de triunfo. Tinha chegado onde queria.
- Mas aí é que está a novidade, Mr. Dipwater! Esta coisinha que aqui vê não-tem-pon-tei-ros. As horas são representadas por números e nem sequer necessita de lhe dar corda. É um modelo único e exclusivo, por apenas dez dólares! Sem esquecer o brinde: três magníficos volumes encadernados que serão seus absolutamente de graça.
Ele explicou-me com detalhe como a geringonça funcionava. Não costumo ir na conversa dos vendedores que me batem à porta, vendam eles bíblias ou tapetes, mas Mr. Lapuane acabou por me convencer.
Saiu da minha casa com dez dólares no bolso e um sorriso profissional na face. Voltou-se para mim quando chegou ao alpendre.
- Fez um bom negócio, Mr. Dipwater. Até à vista.
Apertou-me a mão e colocou o chapéu na cabeça, um chapéu que parecia pequeno para ele. Continuei a olhá-lo enquanto avançava para o automóvel gasto, a mala castanha oscilando na mão. Ainda me acenou uma vez, envolvido na mesma poeira amarela em que chegara. Segui-o com o olhar até se tornar um ponto negro na distância, meio oculto pelo pó e distorcido pelos torvelinhos de ar quente. O céu estava limpo e o calor ainda apertava, embora o crepúsculo já não tardasse.
Ainda não falei de mim. O meu nome já o conhecem: Roger Dipwater. Nasci no Midwest, numa pequena cidade perdida na vastidão da paisagem. Fui novo para New York e trabalhei por muitos sítios, em muitos empregos. Consegui frequentar as aulas nocturnas e acabei por conseguir empregar-me numa firma de corretores, na qual fui subindo a pulso e cheguei a sócio. A vida correra-me bem até ao ano anterior, até ao crack da bolsa. Depois desmoronara-se tudo. Restara-me aquela casa, com a sua pequena quinta, e algum dinheiro, pouco. Por ironia, situava-se na região do Midwest...
Tivera poucos amigos antes e agora não tinha nenhum. Vivia uma solidão entrecortada pelas viagens à cidade próxima, para vender os produtos da quinta e fazer as compras, e agora dera-me ao luxo de comprar um relógio por dez dólares. Por muito estranho que fosse não valia esse dinheiro. Começava a sentir-me enganado.
Depois do jantar sentei-me no alpendre. Levei os livros que o vendedor me dera e o relógio. Olhei para ele. Ele dissera-me que... Sim, era verdade! Carregando naquele botão, acendia-se uma luz no seu interior que permitia ver os números que continuavam a pulsar dentro dele. Era na verdade um relógio estranho. Acabei por colocá-lo no pulso, mas conservei o meu no bolso. Não sabia se o novo era de confiança.
Abri um dos livros. Lia-se na primeira página: "Landscapes and Dignity" por Ashmed Koranshi. Nome estranho aquele, porventura indiano. Por baixo indicava-se: "Impresso em Madrasta, F.L.A. em 2145". Dois mil cento e quarenta e cinco?
Cada dia de Verão tem a sua própria personalidade. Aquele era um dia ardente, em que o ar parecia gritar com o calor que lhe ia nas entranhas.
O pó cobria os arbustos à beira da estrada, dando-lhe a aparência de pequenos homens cinzentos correndo no sentido contrário àquele em que o meu carro seguia. As árvores estendiam por vezes os ramos na minha direcção, pedindo água.
Ia voltar a New York.
Ia voltar ao sítio de onde saíra há quase um ano totalmente arrasado, financeira e moralmente. E agora tornava lá, impelido por uma força que não conseguia explicar. Fora aquela sucessão de estranhos factos que me levara a decidir-me: o relógio, a data de impressão do livro... do livro não! Dos livros! Possuíam todos datas impossíveis: os outros eram "Marching South", por Lars Conrad, datado de 2133, e "Monkey Business and other stories", datado de 2147 e escrito por Thomas Nachtflug. E todos tinham a mesma etiqueta de um pálido cor-de-rosa com letras negras a gritar: New World Corp., 53 46th Street, N.Y.. Eu ia para lá. Algo em mim exigira explicações para tudo aquilo, e eu não fora capaz de resistir ao chamamento.
Tudo naquele dia parecia arder com um fogo interior vindo do inferno e o ar queimava-me o rosto e as ideias queimavam-me o cérebro.
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